PARA ACABAR COM A DOR, MÚSICA!

PARA ACABAR COM A DOR, MÚSICA!

 A dor – seja decorrente de uma doença, seja de cabeça ou muscular – é a razão de mais de 80% das visitas aos consultórios médicos. Descubra como a musicoterapia pode contribuir no alívio deste mal, trazendo força e diminuindo o sofrimento

 

Texto • Paula Bianca de Oliveira


 

Desde o nascimento de seu filho, Stella* sabia das dificuldades que enfrentaria por conta da saúde do garoto. Eduardo* nascera com anemia falciforme, uma doença crônica, que não pode ser curada, apenas controlada. Aos 11 anos de idade, sem conseguir andar e queixando-se de fortes dores pelo corpo, o menino precisou ser internado. Mesmo sendo medicado com morfina, ele não conseguia suportar aquela dor, o que, é claro, deixava-o bastante irritado.

Diante da situação, a família passou a considerar o uso de terapias complementares de tratamento.  Foi aí que a musicoterapia entrou na vida de Eduardo. “Fazer com que ele participasse das sessões já foi uma vitória”, diz Cristiane Ferraz, psicóloga e musicoterapeuta, responsável pelo serviço de musicoterapia do Hospital Albert Einsten, em São Paulo.

Logo no primeiro contato com os instrumentos de percussão, Eduardo escolheu uma marimba e duas congas para tocar. Depois, ainda fez questão de selecionar outros instrumentos para que sua mãe e toda a equipe médica pudessem acompanhá-lo. “Mesmo sentindo dores fortíssimas, ele foi capaz de reger uma improvisação musical, sem parar em nenhum momento para gemer ou se queixar da dor”, lembra Cristiane.

Nesse tipo de trabalho, a música não é apenas um meio de criação estética, mas também uma forma de elaborar o que a pessoa não consegue dizer verbalmente. “Ele batia o tambor com toda a força, expressando a raiva que estava sentindo por estar doente”, analisa a musicoterapeuta. “Era como se ele se sentisse capaz de controlar alguma coisa, quando todo o resto estava fora de controle.”

Os resultados obtidos em um tratamento musicoterápico ativo (no qual a pessoa participa tocando algum instrumento) acompanham o paciente por muito tempo. Vendo-se capaz de criar, ele fortalece a autoestima, pois passa a ter mais orgulho de si mesmo. “Quando a pessoa encontra-se em um estado de euforia ou alegria, ela torna-se menos receptiva à dor”, afirma o médico Rubens José Gagliardi, professor de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Capaz de direcionar a atenção para diferentes tipos de atividades ao mesmo tempo, o cérebro humano pode concentrar-se em determinado ponto, deixando todos os outros em segundo plano. “Quando você ouve música e sente dor, é possível concentrar-se mais no som, tirando o foco da dor”, explica o neurologista.

Antigas canções, novos significados

Diferentes estudos sobre musicoterapia mostram que, além de poderem alterar o foco de atenção, determinados sons são capazes de desencadear respostas químicas do organismo e interferirem no estado geral do indivíduo. “A música tem a capacidade de nos levar a um estado de relaxamento, o que provoca a liberação de substâncias como a endorfina, um analgésico natural do corpo”, afirma Eliseth Ribeiro Leão, pesquisadora de práticas alternativas de saúde da Universidade de São Paulo (USP).

Em sua tese de doutorado, Eliseth investigou, em um grupo de mulheres que sofria de dor crônica músculo-esquelética, as imagens mentais decorrentes da audição de música erudita. “No fim do trabalho, todas elas apresentaram redução significativa da intensidade da dor”, conta. Ela também concluiu que, ao entrar em contato com sons harmoniosos e suaves, o paciente altera a percepção da dor, focando sua atenção em um estímulo mais prazeroso.

“A música faz com que a pessoa crie imagens mentais cujos conteúdos podem proporcionar o alívio da dor”, diz Eliseth. Assim aconteceu com Valéria*, uma senhora que teve o primeiro contato com musicoterapia aos 80 anos de idade. Internada em um hospital por meses, ela sofria de um câncer que lhe causava muita dor física e emocional. Sem a companhia de seu único filho, que morava no exterior, ela não conversava com ninguém, nem mesmo com os médicos. Foi quando a musicoterapeuta Cristiane Ferraz passou a lhe fazer visitas frequentes.

“Ela se sentia muito especial por ter música ao vivo no quarto dela”, conta Cristiane. A cada novo encontro, Valéria sentia-se mais à vontade para falar sobre si mesma, ligando a música a diferentes momentos de sua própria história. “Nos últimos dias, já na presença do filho, ela passou a dar novos significados a muitos fatos da sua vida. Dessa forma, passou a se sentir mais confortável”, lembra a musicoterapeuta.

Acordes que aliviam

Ao atingir o sistema nervoso, a música, por meio da produção equilibrada de substâncias químicas (os chamados neurotransmissores) provoca o alívio da dor. Mais: por possuirmos estruturas “sonoro-rítmico-musicais” em nós mesmos, há pontos de encontro entre a música que se apresenta no mundo externo e a própria música interna, desde nossa vida intra-uterina.

“O ritmo da música se relaciona a cadências humanas, como a respiração e o batimento cardíaco”, afirma a musicoterapeuta Maristela Smith, coordenadora do curso de musicoterapia da UniFMU, em São Paulo. Dessa maneira, é possível encontrar o tipo de música ou som que surte efeitos em quem os ouve, executa ou cria para que se possa identificar o tratamento mais adequado em cada caso.

Partindo desse mesmo princípio, o musicoterapeuta Renato Sampaio, professor do curso de musicoterapia da Universidade de Ribeirão Preto (Unaerp), no interior paulista, iniciou há algum tempo uma pesquisa com pacientes que sofrem de dor crônica, causada por disfunção da articulação temporomandibular. “Em primeiro lugar, identificamos a música que age como analgésico para aquela pessoa. Em seguida, fazemos o paciente aprender a se ‘distrair’ da dor, orientando sua percepção para a música”, relata Sampaio.

Esse “desligamento” só é possível porque, de acordo com o musicoterapeuta, a dor e a música, para serem processadas, mobilizam as mesmas regiões do cérebro. “Como só é transmitido um estímulo por vez, a música toma o lugar da dor”, afirma Sampaio.

A música vai ao consultório


 

Inicialmente concentrada no tratamento de estados de ansiedade – como histeria, depressão e melancolia –, a musicoterapia contra dor vem sendo estudada por médicos e musicoterapeutas de diferentes países. Na Universidade de Michigan (EUA), médicos pesquisadores descobriram que o som do violino pode eliminar dores de cabeça e diminuir a enxaqueca. Já na Universidade de Cambridge, um dentista realizou centenas de obturações e extrações sem recorrer a anestésicos, utilizando apenas a musicoterapia.

Um dos pioneiros no estudo da capacidade analgésica e anestésica da música nos Estados Unidos, o pesquisador James E. Gall, localizou no cérebro humano áreas capazes de gerar bloqueios aos estímulos dolorosos. Desde então, até mesmo cirurgias cardíacas estão sendo realizadas sem a aplicação de medicamentos contra a dor. De acordo com o estudo feito por Gall, ao entrar em contato com uma música melodiosa, terna e serena, os neurônios atingem um estado de harmonia que faz as células "repousarem". O efeito oposto é produzido quando a pessoa é submetida a sons estridentes e desarmônicos, que provocam uma hiperestimulação das células nervosas.

Até mesmo as fortes dores do parto já estão sendo aliviadas somente com musicoterapia. Na Faculdade de Obstetria de Hatyai, na Tailândia, foi realizado um estudo comparativo para avaliar o nível de dor e ansiedade das mulheres durante o trabalho de parto. O grupo que estava sob efeito de música suave apresentou um nível de estresse significativamente menor em relação ao grupo que não fora submetido à terapia musical.

No Brasil, alguns musicoterapeutas vêm desenvolvendo importantes iniciativas de combate à dor. O projeto Musicoterapia na UDT, da Unidade de Dor Torácica do Hospital Dona Helena, de Joinville, Santa Catarina, trabalha a identificação de sentimentos e sensações. Funcionando como instrumento complementar na ruptura do ciclo da ansiedade e no controle da dor, a atividade contribui para a redução da frequência respiratória e cardíaca, da pressão arterial sistêmica e das arritmias.

“A musicoterapia na UDT trouxe para a equipe médica a oportunidade de familiarizar-se com uma nova abordagem do paciente cardiopata”, relata Cyntia Marconato de Toledo, musicoterapeuta e idealizadora do projeto. “Passamos a compreender que a instabilidade das síndromes coronarianas agudas pode ser desencadeada pelo desequilíbrio simultâneo dos sistemas imunológico, nervoso e endócrino”, conclui Cyntia. 
 

* Nomes alterados para preservar a identidade dos pacientes.

O caminho da dor

 

Dor é um sinal de que algo não vai bem no organismo. Seja um ferimento leve, seja uma forte enxaqueca, a sensação dolorida só é percebida quando o estímulo externo chega ao cérebro, onde é decodificado e, finalmente, transformado em dor. Existe um receptor nervoso na terminação da pele, da mucosa ou da víscera que sofre algum tipo de agressão. Tal estímulo externo é captado por esse receptor e transmitido até a medula, por meio de nervos sensitivos, que são como fios elétricos. Da medula, onde existem várias conexões nervosas, essa informação sobe até o tálamo, no cérebro, uma das principais regiões responsáveis pela sensação de dor. Só então o estímulo é decodificado. “Essa área do cérebro é que vai definir que tipo de dor é essa e em que local do organismo ela está ocorrendo”, explica o neurologista Rubens José Gagliardi, professor de neurologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Somente o tálamo é capaz de diferenciar a dor de uma queimação no estômago e de um ferimento na mão, por exemplo.
 

Fonte: Triada.com.br