HAICAI: INSTANTES DE POESIA
Simples e belos, os haicais são poemas japoneses capazes de traduzir, em poucas palavras, a expressão de um momento. Seu efeito, seja para quem faz ou para quem lê, vale por uma meditação. Conheça!
Texto • Erica Franquilino
Olhe a sua volta e procure os sinais da estação. Além da janela talvez existam galhos secos tremulando ao vento, folhas amareladas e outros ecos de outono. Observar cenas como essas e tudo mais que nos cerca constitui a matéria-prima dos haicais.
Tradição japonesa que atravessa séculos, o haicai é a arte de fazer poesias curtas e com expressões relacionadas à natureza, que buscam traduzir, de forma descomplicada, a delicadeza de um instante. Surgido no Japão, no século 16, onde é conhecido como haiku, foi Matsuo Bashô (1644-1694), poeta japonês e monge zen budista, que deu dimensão literária a esta prática quando aperfeiçoou o estilo e fez a divulgação de suas obras no final do século 17.
Essa forma de fazer poesia chegou ao Brasil no início do século 20 pelas mãos do escritor Afrânio Peixoto, que teve seus primeiros contatos com os haicais por meio de livros franceses escritos por viajantes que conheceram esta arte ao visitarem o Japão. “Desde então, o haicai, livremente interpretado, freqüenta a literatura brasileira através de nomes como Guilherme de Almeida, Millôr Fernandes e Paulo Leminski”, aponta o coordenador do Grêmio Haicai Ipê, Edson Kenji Iura.
Além de Afrânio Peixoto, colaboraram para a disseminação dessa tradição em terras brasileiras os imigrantes japoneses, que começaram a desembarcar aqui no início do século passado e trouxeram consigo a prática do haicai tradicional.
Uma forma de captar o tempo
Haicais são poemas curtos, com temas abordados sempre no presente. A referência à natureza se faz por meio de palavras e expressões que indicam as estações do ano, conhecidas como "kigo". São exemplos dessas referências o ipê amarelo para a primavera e a libélula para o outono. “Estas são regras válidas para o haicai original japonês, que o haicai brasileiro reinterpretou.
Grupos como o Grêmio Haicai Ipê procuram incorporar os elementos tradicionais dessa forma poética à prática em língua portuguesa”, ele comenta. O Haicai Ipê reúne um grupo que se encontra mensalmente para estudar, produzir e apreciar haicais.
Um haicai clássico é composto de três linhas, com 5, 7 e 5 sílabas em cada linha. O tema é tratado invariavelmente no presente, com a descrição de eventos concretos e acontecimentos particulares. Não são feitas generalizações, apenas o registro de um momento – basicamente partindo de uma cena maior, uma espécie de pano de fundo, para uma conclusão. Atente para esse haicai de Eunice Arruda:
Solidão no inverno
o velho aquece as mãos
com as próprias mãos
Exercício meditativo
Para Edson Kenji, a prática do haicai é um exercício de presença no mundo e de compromisso com o aqui e agora. Para escrevê-lo é preciso estar bastante atento ao que se passa ao redor, uma vez que o tema para uma poesia pode estar em qualquer detalhe. Essa percepção acerca do que pode ser a inspiração para escrever faz com que o praticante exercite os sentidos, melhorando a consciência corporal e espacial. Isto faz você lembrar de alguma coisa? Exatamente: meditação. Assim como as práticas meditativas, o haikai exige uma concentração plena no agora.
“Qualquer principiante poderá relatar como um novo mundo se descortinou aos seus olhos depois que começou a praticar o haicai”, afirma. Aguçando a atenção para o ambiente pode-se ouvir o canto de pássaros, perceber tonalidades de flores ou o cheiro de uma determinada planta, por exemplo. Essa “descoberta” do mundo, que se revela em ricos detalhes, é um passo importante para sair de quadros depressivos, ele destaca.
Por serem constituídos de versos curtos e regras simples, haicais são aliados valiosos para manter a saúde da mente, sobretudo para os idosos. Esse exercício com as palavras é bastante comum entre imigrantes japoneses, lembra Iura. “Há haicaístas octogenários e até nonagenários que se encontram para praticar sua poesia, sempre esbanjando bem-estar”. Quer melhor exemplo de meditação?
Faça você também
Por onde começar? Por onde você quiser. Os temas estão por toda parte: dentro de casa, nas ruas, no trajeto de ida e volta do trabalho. O primeiro passo é despertar a percepção e munir-se de papel e caneta.
Vá anotando o que mais lhe chamar a atenção. Uma boa dica é procurar não julgar o que está escrevendo, apenas siga anotando. Tente escrever frases curtas, divididas em três linhas. Deixe a preocupação com a forma final para depois. Coloque as frases no papel e depois vá arredondando, com calma.
Iura ensina que a inspiração para o haicai “não cai do céu”. Atenta ao que se passa a sua volta, você pode compor um haicai utilizando um momento no decorrer de um dia de trabalho ou outras situações cotidianas. Do coordenador do Grupo Haicai Ipê seguem alguns exemplos:
Menino de rua
dorme feito morto.
Tarde de calor.
Noite de Ano Novo:
Após a queima de fogos,
estrelas silenciosas.
Na tarde chuvosa,
sozinho, despreocupado,
um pardal molhado.
Confira mais dois belos haicais, respectivamente, de Zuleika dos Reis e Carlos Martins:
Relâmpago azul.
Crescem os olhos da criança
nos olhos da mãe.
A mão do insondável
tantas são as folhas secas
e uma só se move.
Fonte: Triada.com.br